Em Ilusões Perdidas, Balzac conta sobre a vida de Luciano, um jovem poeta que sai de sua cidade no interior da França para ganhar o mundo em Paris. Mundo este que já havia sido posto em suas mãos — ou ao menos assim acreditava.
No entanto, a cada capítulo, acompanhamos o menino deslumbrado com os prazeres, a glória e as paixões parisienses, coisa que jamais havia se deparado antes. Luciano, antes famoso e adorado pelo seu trabalho poético, fruto de inclinações genuínas, encontra na capital francesa, berço das grandes intelectualidades, desprezo, desdém e desconsideração.
Acompanhamos seu declínio, moral e intelectual, ao tentar reverter o cenário inesperado. Seguimos os passos de seus delizes, embebecido pela inveja, poder, vingança e prazer. Gradativamente, nossos olhos vêem sua queda, ascendida por prestígio e ganhos materiais, mas descendida pela corrupção de quem era.
Luciano me lembra Mário, de “A Mulher que Fugiu de Sodoma”, também lido este ano. Mesmo local, circunstâncias parecidas. Também preso em Paris, sem dinheiro para voltar para casa, na luta pela sobrevivência de si mesmo. Porém, enquanto um lutava pelo o que ainda existia de si, o outro esvaziava a si mesmo até as sobras. Enquanto um se reapaixonou pelo seu nobre ideal ao longo de tantos erros, o outro traía suas melhores intenções com o que há de mais passageiro.
Mário teria lido artigos de Luciano pelas bancas de Paris, sem gastar um tostão no jornal. Ouvido seus rumores e especulações, enquanto tocia e escarrava, resistindo à tuberculose. Ambos sofreriam com o inverno europeu, a miséria e a fome, enquanto caminhavam pelos lugares mais formosos de uma França em ascensão. Almoçariam juntos no Flicoteaux, quando sobrasse alguns cobres. Se não fosse trágico ou histórias de dois autores distintos, poderiam ter salvo um ao outro.
Ambos desceram até o inferno de suas circunstãncias, Mário em situações quase totalmente causadas por seus próprios erros, Luciano desprevenido e negligente de qualquer consequência. Ambos com um aspecto em comum: infernos com descidas lentas e graduais, provocadas por diversos pequenos declínios ao longo do caminho.
Meu pai sempre me disse algo que, até terminar este ano, nunca havia feito muito sentido: “em todas as suas decisões, você precisa acertar o olho da mosca”. Não é a mosca. É o olho dela. Isso porque errar é custoso. É um retrocesso que nos custa caro. E talvez, como Mário e Luciano, nunca tenhamos tempo de consertar ou recuperar o que foi perdido.
Sim, somos seres redentivos. A história da redenção é a nossa história como homens eternos, e não é nada menos que isso que comemoramos e estremecemos no Natal. Porém, por mais arrebatador que seja o perdão recebido, ele não anula o ato cometido. Não neste mundo. Um aspecto de irreversibilidade permanece, com cicatrizes e heranças que perduram pela nossa existência e a significam.
Parece duro pensar sobre isso, quando se termina o ano com tantos erros e desvios acumulados. E bem, foi exatamente assim que me senti nas últimas semanas. Apesar de toda a gratidão de um ano que muitas coisas boas me aconteceram, a minha parcela de faltas e negligência é bem alta, e divido isso com muita honestidade. Errei tanto quanto acertei.
Eu comecei 2023 completamente perdida. E vinha por este caminho há mais de dois anos. Enquanto ceiava com minha família nos últimos dias, lembrava-me exatamente da sensação. Ao meu redor tudo parecia bem, mas dentro de mim eu sentia um estranhamento de mim mesma. Nada estava em seu lugar. Nada tinha exatamente um lugar. Sentia que tudo havia se perdido gradativamente, assim como o jovem iludido Luciano. Sentia que estava presa na insignificância de uma vida medíocre, como o pobre Mário.
E foi só quando me deparei cara a cara com os aspectos mais profundos da minha alma e uma grande dose reavivada de fé, que a urgência das minhas ações se tornou real. E eu pude ver e sentir o pesar pela quantidade de erros desnecessários cometidos, a enorme quantidade de tempo e esforço perdidos.
Diferente dos últimos dois ou três anos, eu termino este com meu coração cheio de gratidão a Deus por tamanho amor e misericórdia. As coisas estão finalmente encontrando seu lugar. E o que a história de Mário, Luciano a minha e a sua têm em comum é a construção de uma existência, a formação de um ser eterno. A ocasião sublime de retomar a vida a partir da última falta. A esperança de uma nova escolha. O perdão imerecido. A graça superabundante.