Qual é o meu lugar no mundo?
“Eu sou eu e a minha circunstância”: o que isso realmente significa?
Quando decidi trancar o curso de Jornalismo, já no terceiro ano de faculdade, minha mãe me ligou e disse: “Você precisa voltar para casa”.
Para uma jovem universitária que se achava dona do próprio nariz, obviamente o torci diante dessa possibilidade. Sair do interior, ir morar sozinha numa capital e alcançar certa independência foi meu sonho dourado durante toda a adolescência. Voltar para a casa dos meus pais, numa cidade pequena, sem amigos e me desfazer de tudo o que havia construído nos últimos anos soava como um gigantesco retrocesso.
No entanto, ao meditar honestamente sobre as questões que abrangiam esse retorno, um profundo sentimento de dever se envolvia no meu coração. Duas escolhas, então, se colocaram diante de mim: abraçar o mundo, a liberdade e minhas próprias satisfações; ou abraçar as circunstâncias.
Todos nós, habitantes das bolhas olavetes, já ouvimos reverberações da famosa frase de Ortega y Gasset:
“Eu sou eu e a minha circunstância”
Mas acredito que nem um terço das pessoas que ouviram isto em stories do Instagram e entenderam minimamente seu significado, procuraram saber do que exatamente o espanhol estava falando.
Ortega fala sobre as circunstâncias em algumas páginas de seu prefácio em Meditações do Quixote, quando trata dos problemas geracionais da Espanha de sua época:
“A circunstância! Circum-stantia! As coisas mudas que estão ao nosso redor imediato! Muito perto, muito perto de nós erguem suas fisionomias silenciosas com um gesto de humildade e de anelo, como que necessitadas de que aceitemos sua oferenda e ao mesmo tempo envergonhadas pela simplicidade aparente de seu donativo. E marchamos entre elas sem olhos para elas, com o olhar fixo em remotos empreendimentos, projetados para a conquista de distantes cidades esquemáticas.”
Muito diferente da realidade brasileira, ele diz que sua atual geração, herdando uma pressa e inquietude do último século, ignorava todos os aspectos mais imediatos e momentâneos da vida, concentrando todas as suas energias em empreendimentos sociais, políticos e coletivos. Quão distante de nós, pensar que uma geração inteira se dedicou à boa administração da sociedade, ao robustecimento do Estado, às lutas sociais, à ciência e à cultura — sem um mínimo de sensibilidade aos aspectos mais próximos da vida individual.
Diante disso, Ortega finalmente nos explica aquilo que os filósofos de Instagram muitas vezes não são capazes: enquanto a cultura nos proporciona elementos já purificados pelo trabalho de reflexão e depuração de grandes homens, circunstância é a matéria-prima da qual ainda não se extraiu o “logos”, o sentido, a unidade em que se encerra o espírito. Isto é, assim como, por exemplo, Balzac, na França de seu tempo, viveu de forma individual as adversidades que só depois narrou em Ilusões Perdidas, circunstância é o tempo presente e imediato, desprovido de significação — e que, a partir de uma nova perspectiva, da ação humana criadora, passa a ter sentido e um lugar na realidade.
Entender isso pode mudar nossas vidas por completo. Porque todos nós, seja nas crises existenciais dos vinte ou trinta anos, nos deparamos com a pergunta do título desta carta: qual é o meu lugar no mundo?
É inevitável que, ao enfrentarmos o mundo real, os dilemas de propósito, vocação e adequação se tornem dores latentes. Porém, esses problemas só são capazes de aparecer às pessoas que, através de uma distância considerável de si mesmas, passaram a enxergar a vida e sua complexa hierarquia de um ângulo mais extensivo. “É preciso sair da ilha para ver a ilha”, diz Saramago. Ou seja, é só quando nos deparamos com a realidade em sua forma íntegra e absoluta, que nos damos conta de que ela é maior que nós. E então, esse clamor por um espaço nessa grande estrutura do universo, se torna o grande desafio da nossa existência.
Esse é um processo dolorido porque a realidade ressalta nossa impotência. Ela não tem dó dos mais fracos, nem compadecimento. É absoluta, soberana, rainha do destino humano. Guiada por Deus, protege Seus propósitos e rege a providência — e não podemos contra Seus intentos. Entretanto, apesar de seu caráter aparentemente tirânico, este é o caminho mesmo da saída da caverna. E é somente através das circunstâncias, impostas a nós na vida cotidiana, que adquirimos meios para responder a esse chamado.
Logo, é por isso que nosso olhar não deveria estar voltado para as grandes questões que regem nossa existência, como “Qual é o meu propósito?” ou “O que eu nasci para fazer?”. Mas centrado em uma postura simples e precisa: como eu posso dar sentido às minhas circunstâncias? Como posso transformar essa matéria-prima bruta, imutável, sem significado, que é a minha vida presente e imediata, em algo sublime?
Voltando à minha história, quando eu olhava para aquelas duas escolhas e para a vida que havia construído, sabia que me faltava algo. Na verdade, sabia que nada significava diante da realidade e que seria um grande ato de covardia fugir dessa imposição.
Quando me dei conta disso genuinamente, liguei para a minha mãe e disse: “Ok, eu quero voltar”.
No entanto, assim como o caráter mesmo das circunstâncias, essa decisão me acarretou uma série de outras limitações. Se antes eu me sentia deslocada dentro de uma realidade a qual eu desejara, num ambiente completamente adverso eu me sentia ainda pior. Os sentimentos de insatisfação, impotência e fraqueza me aflingiram como nunca antes. Eu tinha, então, duas opções: aceitar a realidade e dar a ela sentido e significação; ou viver às custas de um arrependimento frustrado.
Ortega diz que a reabsorção das circunstâncias é o destino concreto do homem e ele rende ao máximo de suas capacidades quando adquire essa plena consciência. E, bem, este é o meu e o seu desafio todos os dias quando levantamos da cama. Nossa grande missão é uma questão de perspectiva e sensibilidade: buscar a realidade como ela é e entender que suas limitações e peculiaridades — que tanto nos causam desgosto e aborrecimento — são o que formam nosso lugar exato e exclusivo na imensa estrutura do mundo.
Para meditar
“Todo o geral, todo o aprendido, todo o realizado na cultura é só a volta tática que temos de percorrer para nos convertermos ao imediato. Os que vivem junto a uma catarata não percebem seu estrondo: é necessário que ponhamos uma distância entre aquilo que nos rodeia imediatamente e nós mesmos, para que a nossos olhos adquira sentido.
Os egípcios acreditavam que o vale do Nilo era o mundo todo. Semelhante afirmação de circunstância é monstruosa e, contra o que poderia parecer, depaupera seu sentido. Certas almas manifestam sua debilidade radical quando não logram interessar-se por uma coisa se não criam a ilusão de que ela é tudo o que há de melhor no mundo. Esse idealismo mucilaginoso e feminino deve ser arrancado de nossa consciência. Não existem na realidade mais que partes; o todo é a abstração das partes e necessita delas. Do mesmo modo não pode haver algo melhor a não ser onde há outras coisas boas, e somente ao nos interessarmos por estas o melhor assumirá o seu lugar. Que é um capitão sem soldados?
Quando nos abriremos à convicção de que o ser definitivo do mundo não é a matéria nem a alma, não é coisa alguma determinada — e sim uma perspectiva? Deus é a perspectiva e a hierarquia; o pecado de Satã foi um erro de perspectiva.
Ora, a perspectiva se aperfeiçoa por meio da multiplicação dos seus horizontes e da exatidão com que reagimos a cada um de seus níveis. A intuição dos valores superiores fecunda o nosso contato com os valores mais mínimos, e o amor pelo o que é próximo e diminuto em nossos peitos dá realidade e eficácia ao sublime. Para quem o pequeno não é nada, o grande não é grande.
Temos de buscar a nossa circunstância, tal qual ela é, precisamente no que tem de limitação, de peculiaridade: o exato lugar na imensa perspectiva do mundo; não nos determos perpetuamente em êxtase frente aos valores hieráticos, mas sim conquistar para a nossa vida individual o posto oportuno entre eles. Em suma: a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem.”
— Meditações do Quixote, pág. 30-31
Para apreciar
Like its companion piece, the evening picture of the diptych was painted in 1822. In Moonrise on the Seashore Friedrich took up one of his favorite themes. In the reflected light of the night sky, it is as though the surface of the water begins to glow all of its own accord, taking up the light of heaven, as it were. Clouds have come up and the round shape of the full moon is half hidden behind the banks of cloud at the horizon. This means that the moonlight does not fall evenly but seems to be breaking out of a gateway in the clouds, creating a magical play of light. Complementary colours, ranging from golden to whitish yellow, violet and blue, define the contrasts of light and shade. There is a sense of the magnitude and unity of the universe. Moved by this wonder of nature, three people sit on rounded rocks near the shore, and their dark silhouettes heighten the effect of the gleaming light of the sky and the sea. Two sailing ships pursue a ghostly course across the water. The sublime drama with the moon as the symbol of hope is imbued with a quality of unearthly beauty.