MAS ANTES…
No texto anterior, expliquei como o hábito do contentamento foi imprescindível para que eu desenvolvesse a constância na minha rotina, nos meus afazeres e na minha vida como um todo. E fico enormemente feliz pela repercussão. Obrigada a todos que compartilharam com outras pessoas e me enviaram seu feedback 🫶
Eu gosto muito de falar sobre produtividade, motivação, disciplina etc. porque, além de ser do meu interesse, percebo como as pessoas num geral possuem concepções imprecisas — e até mesmo erradas — de como tratar esses assuntos.
Consumindo esse tipo de conteúdo há tanto tempo, vejo que existe um intenso clamor popular por uma força motriz que traga harmonia e estabilidade aos nossos dias, uma busca tangível por mudança, uma insatisfação massificada da própria vida. E é por isso que, com essas cartas semanais, desejo fazer dos aspectos mais simples do cotidiano material de reflexão, análise e transformação.
Espero que seja proveitoso.
Uma reflexão sobre o cultivo do silêncio
O ano era 2021 e depois de bons meses sem ir à academia, minhas costas começaram a doer como se eu tivesse sessenta anos. Não tive outra opção, voltei aos treinos.
No entanto, um problema me perturbava: eu não tinha um fone de ouvido.
Você não precisa ser tão introvertido quanto eu para entender como esta é uma situação dramática. Treinar sem ouvir uma música agitada, um podcast, uma live ou uma aula do professor Olavo é o cúmulo do tédio e da perda de tempo.
Então, como todo bom consumidor brasileiro, comprei um fone de ouvido da China. Mas acabei esquecendo de considerar que o império chinês se encontrava do outro lado do hemisfério e o produto demorou quase quarenta dias para chegar.
Nesse tempo, a mensalidade da academia já estava paga e me vi em uma grande questão: esperar até que o fone chegasse ou ir treinar mesmo assim?
É impressionante como obstáculos tão pequenos causam tamanho drama em nossas vidas.
Em Ilusões Perdidas, Balzac diz que “na falta de exercício, as paixões minguam avolumando as coisas mínimas”. A falta de prática do amor faz com que as ninharias do cotidiano ganhem uma relevância inútil. Nos prendemos a dúvidas, incertezas e imperfeições que poderiam facilmente ser vencidas com um pouco de uso da razão. O amor atrofia, como um corpo ocioso.
Logo, movida mais pelos vícios que gostaria de me livrar que pelas virtudes que desejava adquirir, decidi começar os treinos do jeito que vim ao mundo: sem trilha sonora. E hoje, depois de quase dois anos, posso dizer que essa prática transformou meu nível de empenho em todas as minhas atividades.
“Na falta de exercício, as paixões minguam avolumando as coisas mínimas”
Isso só aconteceu pelo cultivo habitual do silêncio.
É muito comum estarmos rodeados de estímulos visuais e sonoros. Sem percebermos, nossa mente se torna um acúmulo de poluição sensível. Somos expostos a um novo universo de informações em todo o tempo, com uma frequência impossível de ser apreendida de forma profunda.
Com isso, nossa imaginação e concentração são diretamente prejudicadas.
Não é preciso observar muito para perceber como antigamente as pessoas tinham mais paciência, foco e disciplina para qualquer atividade cotidiana. E hoje parece que a simples leitura desses parágrafos é um grande sacrifício.
Quando eu me pego enfrentando esses obstáculos, na tentativa de ler um livro ou escrever um texto, me lembro que tarefas simples como essas não deveriam me causar tão grande desconforto. Que esses sentimentos de desordem e inquietação precisam ser vencidos, colocados sob correção. E, para isso, preciso cada vez mais exercitar minha mente em práticas que demandam de mim atenção completamente dedicada.
O silêncio, então, se torna um grande catalisador.
Como Odisseu que colocou cera nos ouvidos para fugir do canto mortífero das sereias, é por meio do silêncio que faço uma depuração de todos os estímulos que me convidam para tantos lugares diferentes. É por meio dele que minha concentração encontra seu eixo e ali permanece, me imergindo em uma única atividade.
Engana-se quem pensa que fazer várias coisas ao mesmo tempo é uma gloriosa habilidade a ser alcançada. Você se ilude acreditando que está gerando resultados rápidos e produtivos, mas na verdade, os bons frutos se encontram na entrega aplicada a uma única ação de cada vez.
A primeira vez que treinei em total silêncio foi desconfortável, me senti inquieta, querendo que o tempo passasse mais rápido. Com a prática, minha atenção passou a ser cultivada pacientemente e minha mente se tornou uníssona. Tinha uma sensação de limpidez, meus pensamentos não eram mais um emaranhado de ideias e informações. As coisas ganharam ordem e um lugar ideal dentro de mim. Pudia sentir todo o meu corpo, a contração dos músculos, o controle da respiração, a dor em cada movimento — fortalecia o corpo por dentro e por fora.
Os efeitos desse hábito são imediatos e longuínquos. E para muito além das atividades práticas e ordinárias, o silêncio alarga seus frutos na construção de quem somos. Se a atenção é a forma que empregamos nosso tempo, e o tempo é a substância da existência, um dia a dia de tarefas dedicadas, realizadas com paciência e concentração só podem resultar em uma vida dedicada, atenciosa e concentrada — isto é, uma vida de consagração.
“A atenção é a forma que empregamos nosso tempo, e o tempo é a substância da existência.”
A carta desta semana é um desafio: a próxima vez que for treinar, esqueça espontaneamente o fone de ouvido. Trabalhe, leia um livro ou lave a louça em total silêncio. Assista a um filme mudo. Deixe o celular em casa. Como diz a Mila Marsili, faça um detox musical — e eu vou além: não só de músicas, mas qualquer coisa que se ouça em segundo plano à alguma atividade.
Provoque o cultivo do silêncio na sua rotina e ouça com atenção genuína o som da vida ao seu redor. Com o tempo, isso te trará ordem e equilíbrio interior. Sei que pode parecer uma pequena e insignificante mudança de comportamento. Mas, assim como são os pequenos obstáculos que nos impedem de evoluir, são as pequenas mudanças que nos transformam.